Por Cândido Mendes* (hoje, no JB)
O possível confronto entre a Presidência e o Judiciário, na organização do futuro orçamento, põe em causa a legitimidade da iniciativa do Terceiro Poder em proveito próprio no dispêndio nacional. Repetição clássica das políticas de clientela, e da cosa nostra, na prática política nacional? Ou exercício inconteste, em função da autonomia dos poderes, de alocações específicas no gasto da União? O impasse trazido à opinião pública evidencia, de saída, o desconforto do próprio presidente do Supremo.
“É página virada”, repetiu, como a passar rápido aos fatos consumados frente à consciência do país. Não se indaga das situações comparativas, no tratamento orçamentário dos salários destes funcionalismos, tal como volta a lume o nepotismo do Judiciário, ainda há pouco denunciado pelo Conselho Nacional de Justiça, como órgão de controle externo deste poder. Inquieta, ao mesmo tempo, o Brasil da democracia popular o quanto o velho status quo não se conforma com o repto deste mesmo Conselho, e não desiste de querer reduzir a sua competência.
A devolução, por Dilma, da demanda do Terceiro Poder ao Congresso, fonte primeira da decisão nacional, faz-se em nome do dito “espírito republicano” no comando das instituições. Mas a busca dessa primeira sabedoria nos mergulha na prática do país como ele é. Não escapamos das raízes do pacto de poder, nas suas transações imemoriais com as clientelas, da transigência histórica com a corrupção, e da tolerância do Legislativo, na recusa de sufragar as condenações óbvias e comprovadas das Comissões de Inquérito contra os parlamentares.
Doutra parte, a conservação do mandato da deputada Jaqueline Roriz deverá dificilmente repetir-se. A violência da reação da opinião pública mostra o quanto há limites para o descompasso entre o casuísmo legal e a maturação acelerada de um inconsciente coletivo nacional. É no avanço gradual, irrevogável da nossa democracia profunda que, só a partir do governo Fernando Henrique, data a criação da barreira de 70%, no emprego da despesa pública, para o pagamento de salários. O que foi uma decisão empírica do governo tucano leva, agora, à discussão aprofundada do governo Dilma dos critérios do bem comum, pertinente a todos os poderes, no que deva continuar como a política da cosa nostra, diante de objetivos claros e prioritários de luta contra a miséria e a melhoria social, claramente manifestados pelo Executivo. As condições primeiras da luta anti-inflacionária criaram os freios sem volta para as velhas e frouxas políticas de mera transferência destes gastos para o orçamento que vem. O debate mal começa para a nação dos “olhos de ver”, acicatada, de vez, pela faxina presidencial, e seu impacto no “país diferente”, já à nossa volta. Este que se rebela contra o “fato consumado” ou a “página virada” a que aspira a presidência do Supremo, ainda no país do “tudo bem”.
* Cândido Antônio José Francisco Mendes de Almeida (Rio, 3/6/1928) é professor, educador, advogado, sociólogo, cientista político e ensaísta. Se nos permitem, uma glória da inteligência nacional.
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