Cem anos depois da sua morte, tempo que o legendário Barão do Rio Branco (Rio de Janeiro, 20 de abril de 1845 — Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1912) fixou para que fossem divulgadas as suas memórias, começam a vir à luz os pensamentos e verdades, que à época não podiam ser ditas, do Patrono da Diplomacia brasileira, pelas mãos do diplomata Paulo Roberto de Almeida (clique no nome e cai no seu espetacular blog) a partir de manuscritos do Barão. Aqui nos emocionamos muito em alguns trechos.
Vai uma primeira leva. Tomamos a liberdade de ao final negritar algumas passagens.
Pronto! Acabo de confirmar ao Senhor Presidente, que me havia interrogado a esse respeito, que o Brasil participará das comemorações do assim chamado “centenário da independência argentina” (com aspas, comme il faut), neste próximo 10 de maio, com uma delegação normal, isto é, por meio do nosso próprio ministro em Buenos Aires, e não com alguma embaixada especial ou enviado extraordinário. A decisão, é bom que se diga, foi só minha, e a considero plenamente justificada, como expliquei ao Senhor Presidente. Meus auxiliares, todavia, me dizem, desde já algum tempo atrás, quando, refletidamente, tomei tal decisão, que se trata de um erro monumental. Alguns deles, inclusive, parecem ter ficado abalados com o que chamam de descortesia gratuita de minha parte, enfim, mais uma demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos...
Curiosa essa menção a erro, porque isto me lembra de uma frase à propos, que já ouvi há muito tempo, de um desses nuestros hermanos justamente, mas já não sei dizer de quem, de onde ou quando: He cometido un error fatal! Y el peor es que no sé cual...
Talvez eu também tenha cometido algum erro fatal, mas não sei dizer exatamente qual, embora minha impressão sincera é a de que o equívoco está com eles, não comigo. O erro, terrível, no dizer de meus auxiliares – que se desesperam com esta minha decisão – teria sido representado pelo fato de não termos enviado nenhuma delegação especial, representando a nação brasileira, às comemorações oficiais do centésimo aniversário do 10 de maio argentino, quando tantos países o fizeram. Muitos outros países, justamente, designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros de relações exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de governo, o que me parece um pouco exagerado, mais laissons cela à leur critère. Chacun est maître de ses décisions...
Descarto qualquer erro de minha parte, mas como não posso externar minha opinião au grand large, o faço aqui para a posteridade (e a devida fidelidade a esta musa sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História). A sinceridade é uma dessas virtudes que, infelizmente, poucos homens públicos podem externar em todas as circunstâncias.
Qual erro cometi, afinal, já que não vejo nenhum em minha decisão de não ver nesse dia nada de realmente extraordinário? Seria o 10 de maio uma efeméride suscetível de mudar dramaticamente o curso da História, na mesma categoria dessas de que me ocupei largamente no passado? (É bem verdade que me ocupei também, nas efemérides, de fatos corriqueiros, mas isso foi mais por distração do que por verdadeiro culto a essa musa, que no entanto respeito e venero, como uma das minhas preferidas, ao lado daquela que comanda aos prazeres da mesa, se por acaso existir uma tão gourmande quanto eu...)
Os argentinos estão festejando, com orgulho indevido em minha opinião, o 10 de maio de 1810, que é quando nossos vizinhos acreditam que “conquistaram” a sua independência da Espanha (ou de Napoleão, sejamos mais claros). O fato, absolutamente verdadeiro, é que no 10 de maio de 1810, não foi proclamada nenhuma independência argentina. Nada aconteceu nesse dia, a não ser o reconhecimento, pelo cabildo de Buenos Aires, de algo absolutamente fáctico, tão evidente que sequer havia necessidade de qualquer proclamação em torno disso: o trono de Espanha, o legítimo, tornou-se obviamente vacante – mas não foi nesse dia – em função da “destituição”, de seu real cargo, de um desses Bourbons que os próprios franceses tinham se esforçado para colocar no trono de Espanha um século antes. Mais uma querela dos Pirineus...
Eles, os argentinos, que nisso são equivocadamente seguidos por meus auxiliares, acreditam que sua independência começou nesse dia – eles comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo da utilidade – quando ela só se firmou, de verdade, muito tempo depois, mais até do que seu orgulho nacional o permitiria. Ela de fato só ocorreu, e mesmo assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo valer o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas da crítica. Estas, como grande parte do palavrório dos diplomatas, se traduzem muitas vezes em declarações chorosas, que falam da “opressão dos invasores”, ou da “usurpação do trono”, enfim, essas frases ocas, em que comprazem nossos colegas de carreira.
Todas essas construções intencionais, de uma pré-ciência de “momentos históricos”, de fato delineados a posteriori, servem apenas para alimentar os mitos nacionais, quando a realidade é que a soberania e a independência de uma nação só se garantem na ponta dos sabres, como afirmava o velho Bismarck, ou numa eventual carga de cavalaria, como parecia preferir seu colega de conquistas, o general Moltke. Seja como for, esses nuestros hermanos, siempre tan hermosos, inventaram o mito do 10 de maio apenas para ter precedência sobre nossa própria independência, e querem que acreditemos nisso. Sinto muito, mas não caio nessa peta!
Se me permito aqui parafrasear o general Roca, nosso amigo sincero – dos poucos que temos naquele país de arrogantes gaúchos que se creem ingleses dos pampas – eu diria que muitas coisas nos unem, mas algumas nos separam (mas isso eu não posso afirmar de público). Já não me refiro ao esporte bretão, que parece começar a empolgar multidões dos dois lados do Prata, mas sim a interesses concretos, com destaque para o equilíbrio de nossas forças navais, cruciais na nova conformação dos fatores de guerra que teve início pela construção dos primeiros dreadnoughts pela Royal Navy. Não acredito que possamos levar muito longe essa insana competição por encouraçados cada vez maiores e poderosos, inclusive porque o nosso pobre orçamento não o suportaria (e esta é uma das poucas razões pelas quais apoio esse difícil pacto ABC, quando preferia ter apenas o Chile como aliado constante e fiel, junto a nosso grande irmão do norte, um pouco inconstante, este).
Os argentinos são, sem sombra de dúvida, muito mais ricos do que nós; aliás, mais até do que vários europeus (e, ouvi dizer, até mais do que os franceses, que cunharam a frase, muito frequente em suas operetas, de riche comme un argentin...). Nossos vizinhos podem, portanto, se permitir essas loucuras com seus orçamentos militares, ainda que a quebra do Barings – quando eu começava a me ocupar, justamente, do nosso conflito em torno de Palmas – comprove que, mesmo assim, nem tudo é possível de se fazer com o dinheiro alheio. Os pobres venezuelanos, aliás, sabem muito bem disso, ao terem tido de suportar o peso de canhoneiras estrangeiras, porque um desses coronéis malucos que frequentemente se apossam do poder naquele confuso país andino e caribenho se recusou a cumprir com suas obrigações financeiras, algo que nosso Império, sempre tão endividado, jamais chegou a cogitar. Se tivemos de negociar nosso último funding loan em termos que não foram certamente os mais flâteurs para nossa dignidade nacional, foi porque um bando de bárbaros do sertão nos obrigou a levar uma guerra frustrante, em quatro sucessivas expedições, que consumiu nossos parcos recursos do café, como antes já tinha ocorrido com a maldita guerra contra o ditador Solano Lopez.
Pois bem, voltando às “comemorações do 10 de maio”, imagino que um dos meus críticos argentinos – me refiro ao inacreditável Estanislao Zeballos – possa estar agora falando de mim: “Maldito barón” – com b minúsculo, para me diminuir um pouco mais – “siempre depreciando a nuestra patria, como si Brasil no fuera una porqueria, un cambalache, yá lo sé...”. Foi ele mesmo que nos levou a esta situação absurda de competição naval, com sua agressividade militarista tão desproporcional quanto às supostas ameaças do Brasil e do Chile, que o próprio presidente José Figueroa Alcorta teve de demiti-lo em meio ao seu mandato. Zeballos nunca engoliu o que continua a chamar de “desmembración” do território argentino, mas que foi apenas um laudo impecável do presidente americano, em face de meus argumentos absolutamente fundamentados na história – e na nossa boa cartografia lusitana – em defesa do nosso pedaço das Missões. O mesmo belicoso Zeballos, quando ministro, queria controlar nossas aquisições de fragatas na Europa, e até “dividi-las” com eles (o absurdo!), mas nunca hesitou em exigir de seu próprio presidente aumentos fabulosos das compras militares argentinas, como tampouco se eximiu de propor a preparação de suas forças navais para eventualmente ocupar o Rio de Janeiro pela força.
Como querem, agora, que eu conceda em enviar uma delegação de alto nível a um país que falseia sua história, que mantém sonhos ridículos de grande potência e que, além do mais, reincide num protecionismo renitente, que prejudica nossas legítimas exportações de açúcar e de algodão? Como querem meus auxiliares que eu me disponha a assinar um acordo de comércio preferencial com nossos vizinhos – concedendo-lhes as mesmas vantagens que eu concedi às farinhas americanas – se eles continuam a comprar quantidades ínfimas do nosso precioso café? Não! No que depender de mim, não haverá acordo comercial de nenhum tipo com os argentinos, até que eles nos reconheçam como uma nação tão merecedora de consideração como aquela que eles estão sempre tão dispostos a conceder à velha Albion, que eles, também ridiculamente, estimam ser o seu modelo a imitar, ainda que não exibam toda a pompa e circunstância da Corte de St. James.
Sei que o dileto amigo Julio Roca sempre propugnou por uma estreita união dos dois países, afirmando, ao nosso Campos Salles que, ao desenvolver “laços da mais íntima amizade”, Brasil e Argentina, juntos, seriam “ricos, fortes, poderosos e livres”. Pode ser que, um dia, de fato cheguemos a essa situação, de sólidos vínculos entre nossas duas economias, mas não antes que nuestros hermanos abandonem sua ideia de preeminência militar, mesmo que continuem mais ricos do que nós por certo tempo ainda. Atualmente, eles quase se igualam à riqueza americana, mas essa situação pode não perdurar, e o Brasil chegará a ser também, um dia, rico e poderoso, se para tal lhe ajudarem o descortino e a capacidade intelectual de nossos líderes, hoje, infelizmente, tão carentes de educação econômica e tão pouco propensos a educar o povo, como preconizou para a Argentina, tão justamente, o genial Sarmiento. Quando teremos um intelectual como ele, entre nós?
Esse dia chegará, estou seguro, mas certamente não será do meu tempo; talvez dos meus netos, mas sobre isso falarei um outro dia...
Rio de Janeiro, 2 de Maio de 1910
O grifo vai em reflexões que não conseguimos deixar para outro dia. Um desabafo sofrido do Barão do Rio Branco, há mais de cem anos! Como disse Merval Pereira: "em abril de 1909, ele deixou claras as razões que o levaram a recusar",
..."de maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura, praticamente vitoriosa, à Presidência da República, certamente o cargo mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época".
"Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade (...) de assumir um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional."
"Minha aspiração - sem pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente - é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis".
"Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade (...) de assumir um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional."
"Minha aspiração - sem pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente - é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis".
Se o Barão visse o que os canalhas do governo FHC fizeram com os bens nacionais. Se visse agora, uns que se diziam esquerda e... Bem, neste texto citamos apenas homens de direita, extrema-direita, exceto pelo Barão, que não sabemos, por incultos. Sincero o foi, ao menos com a posteridade e nas memórias de acima.
No hay comentarios.:
Publicar un comentario