Aos amigos da mesa 1, com respeito.
O Pato me encontra às oito da noite porque, coisa muito estranha, faltei sem avisar ao encontro das seis, sexta-feira às seis sempre ingerimos as primeiras no Naval do Mercado Público. Bate, bate, depois mete a chave na porta do apartamento, gira e entra, berrando: “Tá em casa, interdito?”. Nada. Eu completamente vestido, gravata e tudo, imóvel estendido na cama, serenamente arroxeado. “Acorda, louco!”. Nada. O curso que fiz com o japonês é perfeito, nenhum sinal de vida, também graças à infusão que o japa me fez beber, garantiu que a quantidade de curare é mínima.
Aproxima-se da cama e me apalpa, sente que tem algo errado, toma o pulso e então o susto. Ligeiro ausculta o coração, resfolegando de nervoso, e aí se apavora. Arrá, cagão, vai correr? Não corre, imagino que procura manter o sangue frio, sabe que não é hora de medrar. Senta-se ao pé esquerdo da cama, que range tristemente, e fica quieto. Reflete sobre o que fazer. Arrisco-me e espio com as pálpebras semicerradas, noto que está meio alto e suando, apesar da temperatura ser de nove graus.
Levanta-se e monologa, voltando à sala: “Tudo bem, já que é assim..., mas ao menos tem trago neste covil?”. Está derrubado de triste, na certa procura lembrar o que se deve fazer e principalmente o que eu gostaria que fizesse numa hora destas. Serve-se de rum com coca, “para variar”, reclamando que rum prata não é a mesma coisa que rum ouro, e põe-se a meditar. Passado algum tempo dá um salto do sofá e resolve sair. Acho que lembrou.
Uma hora depois ouço a barulheira e as vozes na porta do edifício, bem em frente ao Covil, acho que fez o que imaginei. Não dá outra, invadem o apartamento aos atropelos, todos querendo ver e apalpar o artista principal.
Lamúrias, ofensas, imprecações, blasfêmias, até que o Renan apanha sobre a mesa a anotação que deixei propositadamente, com o nome e o telefone do médico, que já deve estar bêbedo esperando a ligação.
O Pato liga e ele vem em dez minutos. Diagnostica no ato: "parada cardíaca, lá pelas seis da tarde”. “Eu não disse? Batata!”, exclama o Renan orgulhoso. O sem-vergonha viu nos rabiscos alusão a um cardiologista e cantou a pedra antes. Até que providenciaram tudo rapidinho, os viados.
Em alguns minutos me enfiam no melhor terno que tenho, sapatos idem, e lá vou eu para o ataúde. Ainda batem boca com o funcionário da funerária que trouxe a encomenda, mas cedem ante as justificativas: urna lisa com moldura e visor grande, alça em toda a sua volta, com dez caras de leão na cor dourada, forração na caixa e tampa em tecido de primeira qualidade, travesseiro solto, babado e sobrebabado em renda, acabamento externo em verniz, sobretampo móvel... Mais flores, coroa, translado, sei lá o que mais. Está explicado o preço exorbitante. Nunca vou esquecer disso, eu lá deitado ouvindo a qualidade do caixão e as vantagens do serviço.
Empunhando uma taça de vinho, o “doutor”, para me gozar, tem o peito de perguntar ao responsável se deseja que injete formol no falecido, como precaução para o caso de a festa ser duradoura, mas o Pato não permite: “Se quiser injete uísque, formol não”. Todos se calam, ninguém quer desperdiçar bebida. Tudo correndo bem, o falso médico enfim se toca e vai se despedindo, suspiro mentalmente, no estado em que está periga entregar a farsa. Vai me pagar pela história do formol, ah, se vai. Os que chegaram primeiro bebem de vira-vira, para espantar o nervosismo.
Calculo nove e meia da noite, ou mais, já me perco no tempo, agora todos estão altos do chão. Se conheço bem a minha raça, daqui a pouco começarão a cantar. Espiono à vontade.
Sinto-me um rei aqui no meio da sala, cercado de coloridas velas de palmo e meio de altura, coroas, perfumados jasmins e crisântemos. Optaram por deliberar em assembléia geral o momento de avisar a família, é muito cedo e além disso muitos convivas ainda não chegaram. Ainda estão na fase da consternação, tristeza, algumas lágrimas, mas sem esquecerem de mandar vir bebida para um exército. Chega a Verinha, pela voz percebo a comoção. Ainda bem que não trouxe a Maria Eugênia, uns dois aninhos apenas, eu seria obrigado a estragar a comemoração.
Logo após a Vera, entra o Madalozzo e fala: “Não dá nada, todo mundo morre, vocês parecem crianças!”, e sai todo macho atrás de bebida forte. O Joeci explode em prantos, de doer o coração. Em alguns minutos ouve-se alguns soluços abafados vindo da cozinha, nem o Madalozzo agüentou a besteira que disse.
O Renan diz: “Sem o Salito, o Pampulha jamais será o mesmo. Proponho que doravante ninguém mais sente na cadeira da janela, aí a gente faz de conta que ele tá lá”.
O Joeci: “Isso, e a gente põe sempre um copo cheio na frente dele”.
O Pato e o Roger ficam quietinhos, chegam a brigar pela cadeira da janela, às vezes vão as seis da tarde, o bar mal abrindo, para pegar primeiro. É que a janela para a João Pessoa dá vista da calçada, onde a partir das sete tem o desfile das comerciárias largando do trabalho, uma profusão de bundas passando rente. Para quebrar o silêncio, o Roger acaba dizendo com ar de desinteresse: “O copo cheio já tá bom, em qualquer cadeira que sobrar, o Sala nunca ligou muito pra lugar”. Uma deslavada mentira, mas ninguém o desmente.
Batem à porta, é o entregador, o Milton pergunta se estão geladas mesmo. Carregam caixas e caixas de cerveja para dentro. Duas caixas de doze eram de vinho, soube depois.
Fazem as contas e concluem que já tem quorum para a assembléia geral. Coisa de petesudos, reunião até para marcar data de reunião. Renan frisa que o quorum é mínimo, mas vamos nessa, o Patinho procura papel e caneta, resolveu secretariar, pediu ao Milton para presidir.
Aberta a sessão, o Joeci se adianta e abre os debates: quer avisar amanhã à noite. O Roger prefere no domingo e o Madalozzo na semana que vem. Joeci replica que domingo não pode, tem um churrasco para ir. Madalozzo insiste na semana que vem, para dar tempo de todos curtirem o passamento, tem gente de longe para ser avisada.
A Verinha quer agora, família é família, só de filhas o doido tem uma penca. Schiru pondera que se vão avisar na semana que vem é melhor chamar o sujeito que propôs o formol, no que todos concordam. Bate-boca, outros se metem, falam ao mesmo tempo, ninguém se entende. O presidente Milton, até então sem abrir a boca, propõe uma pausa para reflexão, pede silêncio.
Ruído de garrafas, rolhas saltando, tampinhas caindo, marulhar de líquido na queda do gelo. Tornam a se molhar, os cafajestes. E lá se vão os meus uísques. Ao fim de algum tempo, ninguém agüenta mais ficar quieto, silêncio em velório é incômodo pacas, e o Roger começa a contar a piada do basco que virou sapo, mas antes que chegue "al bañado" a Verinha sugere o reinício dos debates.
Milton reabre. Novas controvérsias, a discussão se acalora. Alguém fala baixinho: “Que tal a gente empalhar o Sala, aí vai poder sempre acompanhar a gente no bar”. Não reconheci a voz do espertinho. O Pato enche o saco e sentencia: o morto é meu, vai ser amanhã à tardinha e fim. Milton bate o martelo, digo, o copo. A Verinha aprova com firmeza. Os três, mais o Schiru e o Maga, são os únicos que ainda pensam alguma coisa. Deixam a porta aberta, escancarada, como convém neste tipo de cerimônia. Falta muita gente. Tem tempo.
Chega o Ivoran em órbita perguntando cadê o aniversariante e o Maia acorre apreensivo, confidenciando algo ao seu ouvido. O Ivoran investe para o meio da peça querendo derrubar o caixão, velas, flores, tudo. Corre-corre a tempo de impedir o tresloucado e rotineiro gesto. Indignado vai para a cozinha e vira a mesa com estrépito, espatifando copos, a garrafa senti que ele segurou, é louco mas não é bobo. A moçada pensa em presença espiritual e faz coro: “Bem vindo, Zé Maria!”. Volta para a sala decidido, mas não belicoso, abaixa-se até dois centímetros do meu rosto e grita: “Qual é a tua, cara! Que papo é esse de abotoar?!”. Está furioso comigo. A seguir ajeita um copo entre meus dedos, dizendo que hoje vai beber vodka pura, nada de petróleo, depois manda lembranças ao Raul Seixas e, ufa!, vai sentar em algum canto.
O Chico Hypólito comparece fardado: tênis, calção e camisa regata, estava com a turma da correria, se preparam para a maratona. Depois de fazer as honras diz que está numa sede de camelo. A seguir adentra o Sidnei Tigran Gdansk, também morto de sede, mas diz que devido ao ensaio do coral. Por alguma razão está revoltado com alguns argentinos. Pato atende ao telefone: alguém avisando que não achou o seu Mário Barros, não teremos violonista profissional.
Já tem gente saindo pelo ladrão. O Roger reclama que não colocaram Piazzolla no som, argumenta: “Ele gosta...”. Roda Piazzolla bem alto e torno a repetir a mim mesmo que não morro sem ter um caso com a Amelita Baltar, num quarto azul vai falar baixinho "loco, loco...", mirando meus olhos castanhos. Pela função em torno dos discos, enquanto as últimas notas de Libertango me envolvem, pressinto que daqui a pouco qualquer tango serve, depois boleros, conheço meu povo. Corro o risco de acabar ouvindo lambada e rock pauleira.
O Maurri lembrra de avisarr as mulherres que vez em quando me acompanham e pergunta: “Sei de umas nove, quem conhece mais alguma que valha a pena?”. Fico matutando se houve mesmo terceiras intenções. Ivoran imediatamente acrescenta: “Isso mesmo, o vivente, ãh, digo, o mortente, merece”. O Madalozzo levanta, propõe um brinde e diz: “É o mínimo que podemos fazer pelo camarada, ao menos aquela comunista loira, gostosa a dar com um pau, que certa vez ele me apresentou rapidamente... acho que ela seria de suma importância nesta hora”. Tigran emenda excitado: “Sim, e aquela morena de Canoas...”. Hummm... isso não está me cheirando bem. O Pato diz que as mulheres que nunca foram ao bar ele já mandou avisar. O Madalô se apodera da minha agenda à procura de mais nomes. Magalhães intervém: “As casadas deixe de lado”.
A bebida correndo fácil e a conversa caminhando para a algazarra quando entra o Roni eufórico portando dois gorilas brancos, um padre roxo e uma camisa-de-força, alegando ser para o meu bem e que não sabia se era loucura ou morte o meu mal. Protestos generalizados e ele sorri explicando que é gozação póstuma. Mandam os gorilas passear, mas ficam o padre e a camisa-de-força, alguém pode precisar. O Ivoran, o Madalozzo e o Roger olham desconfiadíssimos para a camisa.
O Joãozinho chega devagar, sossegado, pára e solta: “Viva o Brizola!”. Vaias, impropérios, xingões. Todo mundo é petê, salvo o Joeci, o Madalozzo e eu, que somos comunas. Joãozinho se encosta na janela enquanto o Aldêmio não retorna com as cadeiras que foi pedir emprestadas na vizinhança, está demorando, se vacilar a tarada do oitavo andar o pega na marra.
Uma após outra chegam cinco mulheres, giram em torno do caixão soluçantes, me fazem carinho no rosto, cercadas de atenções dos marmanjos, cada uma pensando que as demais são minhas parentes. Só me falta briga como em velório de malandro de boca. O Magalhães me salva do espetáculo remetendo-as para a cozinha fazer tira-gostos, no capricho. Não gostei, lá tem facas. Pela fala engrolada, o Milton encarou o vidrão de cachaça com pitanga, o Schiru idem, Hypólito decide dar uma experimentadinha. Hoje tem.
O Roni colhe assinaturas para anexar à carta que há pouco escreveu à mulher do Ivens, em testemunho da veracidade do conteúdo, convocando-o a vir. Muitos assinam. Questiona alto se não seria de bom alvitre mandar um advogado junto ao documento, para assegurar-se de que o valente destinatário saia sozinho depois das nove da noite. Todos acham desnecessário, mas ele fica na dúvida. Eu também.
Pato empunha o violão e diz solene: “Bueno, tira essa lambada que aqui vai uma poesia para o meu querido compadre”, uma pausa, som do talho na pinga, sei que limpa o bigode com as costas da mão, e lasca: “Índio maleva que se preza, não liga pra coração, esta bosta quando se enfeza, deixa o vivente na mão. Mas o guasca apaixonado hay que não ir fundo, tomem como exemplo meu mano, vejam que os amores do mundo, acabaram c’o haragano!”. Aplausos frenéticos, “É isso aí!”, "Oigale-te!”, “Bis”, “Tris”, “Mais uma!”. Ao se acalmarem, Schiru diz imponente: “Bravo”. Joãozinho emocionado: “Gostei muito, Pato”. Danilo em soluços: “Amei, Patinho querido”. O Ivoran: pera aí, haragano não conjumina, ele falava que era charrua, com gotas de guarani. A Vera: pára quieto, Ivo, que importa os índios, haragano vem do espanhol, andarengo de faca na bota, acho que ele era espanhol com portuga mesmo.
Muito bom, confesso, que vi boa parte da cena.
ResponderBorrargrande abraço