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Hoje inauguramos a seção "Lembranças do mensalão", com matérias tratando dos fatos que desaguaram na Ação Penal 470, e sobre a própria Ação Penal. O critério para a seleção é simples: bons textos, que lancem alguma luz sobre qualquer fato ou etapa do imbróglio, desde o comportamento delitivo, descrito na peça de acusação, até o julgamento e sua repercussão.
Todos temos lado, tomamos posições, então não importa qual é o lado, este ou aquele ângulo de visão, mas terão de ser textos escritos sem ódio, com bom senso. Sugestões ou contribuições serão bem-vindas.
Abrimos com a coluna deste domingo da jornalista Dora Kramer, no Estadão.
Algodão entre cristais
Por Dora Kramer
Fácil não foi. Houve mesmo momentos em que o ministro Carlos Ayres Britto
achou que não conseguiria cumprir o propósito de incluir o julgamento do
processo do mensalão na agenda do Supremo Tribunal Federal durante sua breve
presidência.
Seriam apenas sete meses, em função da aposentadoria compulsória aos 70 anos
completados hoje, a respeito dos quais Ayres Britto começou a pensar desde o ano
anterior.
Decidiu que se empenharia no exame da Ação Penal 470 ao juntar os fatos: o
caso acontecera há sete anos, a denúncia havia sido recebida há quase cinco, a
instrução terminara um ano antes, a prescrição de alguns crimes batia à porta do
processo.
Não obstante as condições objetivas favoráveis, Ayres Britto sentia a
atmosfera desfavorável e um obstáculo concreto a ser transposto: o revisor
Ricardo Lewandowski dava indicações de que não liberaria seu parecer tão
cedo.
Além disso, recebia ponderações de amigos de que talvez não fosse um bom
negócio se envolver numa confusão desse tamanho em tão pouco tempo de
presidência.
O tribunal paralisaria os trabalhos, viveria boa parte de sua gestão em
função de um único processo e ainda receberia críticas por ter feito coincidir o
julgamento com as eleições municipais.
Os argumentos não pareciam consistentes ao ministro Ayres Britto. A paralisia
de outros processos seria um preço inevitável e as eleições fazem parte da
rotina do País. O ministro quis antecipar o julgamento para maio, mas não
conseguiu devido às resistências no colegiado.
Vencidas pouco a pouco em negociações prolongadas. Foram inúmeros encontros
preparatórios até que no dia 6 de junho foi anunciada oficialmente a data do
início do julgamento para dali a dois meses. Lewandowski e Antonio Dias Toffoli
não foram à reunião, alegando outros compromissos.
Entre as poucas pessoas que apoiavam a empreitada estava a ex-ministra do STF
Ellen Gracie. Presidente da Corte quando a denúncia foi aceita, em 2007, ela
telefonou para Ayres Britto para dar apoio e dizer que ele era a pessoa certa,
no lugar certo.
A combinação de suavidade, persistência e firmeza faziam dele o perfil ideal
para levar adiante o processo.
Ainda assim houve um momento, mais ou menos um mês antes de conseguir bater o
martelo, em que o ministro viu a coisa feia e achou que não seria possível fazer
o julgamento a tempo de evitar a prescrição de alguns crimes, tamanha era a
pressão. Implícita, jamais explícita.
Ele perdeu a conta das vezes em que ouviu a pergunta "por que julgar?". À
qual rebatia com um "por que não julgar?" que deixava o interlocutor sem
resposta.
Olhando os últimos três meses no retrovisor o ministro evita qualquer crítica
aos colegas, mas aponta que os desentendimentos entre eles foram responsáveis
pelas situações mais difíceis que teve de enfrentar durante o julgamento.
Principalmente quando as divergências resvalavam para o campo pessoal, beirando
o insulto.
Nessas ocasiões Ayres Britto via a coisa realmente feia - "um verdadeiro
sarapatel de coruja", na expressão da Sergipe natal - e improvisava.
Quando era possível cuidava de elevar a "taxa de cordialidade" no plenário
com alguma tirada poética, mas quando não havia jeito suspendia a sessão e
promovia um entendimento informal que se traduzia na restauração da formalidade
na volta dos ministros ao plenário.
Carlos Ayres Britto deixa o Supremo Tribunal Federal sem nostalgia - "tenho
facilidade para virar a página", diz - e absolutamente tranquilo quanto ao dever
cumprido pela Corte.
Não vê sentido nas críticas de que o STF deixou de lado a ortodoxia jurídica
para se comportar como tribunal de exceção.
"Heterodoxo foi o caso. A novidade não está no julgador, mas no processo
julgado, na quantidade de réus, na gravidade dos crimes e na ousadia dos
criminosos. O Supremo fez o que deveria ser feito."
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