viernes, 12 de julio de 2013

Peões de areia protestam

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Às 19 horas Bruno Contralouco entra no bar silenciosamente, coisa bem estranha, e senta sozinho lá no fundo. Sorri amarelo para gracejos e brincadeiras que os amigos fazem de longe e com as mãos pede uma cerveja.

Mas que puto calor faz em Porto Alegre - diz Tigran Gdanski -, uns 27 graus, que droga, semana que vem volto pros 15 graus da Polákia. 

Isto aqui dentro - contrapõe Nicolau -, o bar atopetado de gente e com o fogão a mil, pois na rua está apenas 22. E tu volta é de saudade, não da temperatura, acho que da Klaudia K. Wojciech.

Comi muito a prima dessa Klaudia - diz Chupim da Tristeza -, que só saiu de Porto Alegre para ir a Tramandaí.

Só 22, em pleno inverno gaúcho - ironiza Silvana Maresia, como todos cientes de que 10 já estaria bom.

Assuntos pipocando de todo lado, alegria de sexta-feira.

A doutora Jezebel do Cpers, ilustre sociológica, psicológica e outros bichos, que conhece bem seus bugres queridos, vai até a mesa do Contra. Senta, puxa assunto, e ele fazendo bico olhando para o copo. Sussurra, o abraça. Ele hesita, se emburra, ela o acaricia, fala baixinho, demora, agora ele retribui o abraço, parece chorar. Ela consegue, o convence a mudar-se para a mesa central, junto à turma. Já lá no meio, mais uns agrados e ele resolve contar a razão de cara tão feia. Depois de uma cerveja e meia o boêmio já tinha dado uma relaxada. E quando fala, todos sabem, fala feito menino, sem culpa. O calar das mesas do centro faz com que o bar silencie, o Contra nem notou e foi dizendo, olhando para o copo, contrariado.

"Hoje de tarde eu saí da casa daquela mal casada que mora ali no pé da rua Formosa e vim de a pé, remoendo a vida, e ao passar ali na frente do prédio da Justiça Federal, aquele ali perto do Parque Harmônico, vi que tinha uma peãozada na frente, de faixa, bandeira e tudo, em protesto contra sei lá o quê, um negócio de tirar areia. Umas duzentas pessoas, mas tudo quietão. Corri pra casa, me vesti de peão, pra isso não precisei me esforçar muito, e voltei lá. Zanzei devagar no meio da tigrada, dei tapinhas nas costas de uns, que retribuíram mesmo não se lembrando de mim, até que cheguei na frente do portão principal, que os meganhas tinham fechado, e gritei: 'Ei, ô de preto, tu aí, puta merda, vão atender a gente ou não?!'. Aí os meus colegas, que tavam meio borocoxô, se animaram e gritaram também, um negócio de receber comissão pra discutir liminar, sei lá. Os guardas de preto lá dentro nem aí, tinha um de óculos escuros que marquei, metido a bonitão que quebra dente de pobre, esse eu ia pegar primeiro. Aí fui até o companheiro que parecia mais enfezado e falei sério: 'Tchê, acham que a gente é cagão, a gente devia invadir essa bosta, semos uns duzentos, aí o dotor juiz vai ter que se abrir, tão pensando o quê, que a gente é lixo?'. O camarada se animou e disse alto umas besteiras pros de preto, mostrando que não era só eu que era macho. Eu emendei berrando: 'Tão se achando valente, é, então venham aqui pra fora, se forem bem home!'. Dali a uma meia hora eu e mais uns trinta já távamos chamando os seguranças de filhos da puta, e eu mirando a grade, vamos derrubar essas grades, pessoal, e a turma já frigindo de raiva, logo a gente ia derrubar tudo e invadir o prédio. Raivoso de tão indignado tomei distância pra bater o penalti, indo de costas até o meio da rua, a turma me olhando na torcida, um maluco gritou vai cara que nóis imos junto, então corri e dei uma voadora na grade, bati com as duas, e ela se foi. Foi aí que fudeu tudo".

Fechou a cara e pediu a terceira cerveja ao Portuga.

Wilson Schu vai ao banheiro murmurando: "O Contra andou sonhando acordado, tomara, não sei se meu coração aguenta".

Os boêmios tentam se recompor, ainda raciocinando sobre o que ouviram do amigo famoso. O Contralouco enche o copo e toma de gute-gute até esvaziar a loira.

O filósofo Aristarco de Serraria, hoje com os pés no chão, os copos e o mundo não estão rodando em torno de si, diz calmamente:

"Fudeu o quê, Bruno? Calma, conta pra gente. O que não deu para fazer hoje, outro dia dá, este mundo roda...".

"Tá, conto, mas não me levem a mal, é uma raiva que tenho. Eu ajudaria a eles, os peões de areia, mas queria que eles me ajudassem. Se a gente entrasse eu quebraria os óculos escuros e a cara do idiota metido a bonitão, deixaria a turma brigando e correria até o 4º andar, onde tem as Varas de Execuções Fiscais, é lá que o sistema fode os pobres que não conseguem pagar as contas de inps, imposto de renda e o caralho, e botava fogo em tudo, aquela papelada velha queimaria em dez minutos, sem abalar as estruturas do prédio. Eu tinha duas caixas de fósforos e uma garrafinha de álcool no bolso. Estava tudo dando certo. Aí me apareceu um bundão de sindicato, patronal, só podia ser, e podre de rico, o mesmo que botou os peões ali pra reclamar como se os coitados fossem os beneficiados, e fudeu tudo. Plantou-se na frente das grades caídas apavorado e gritou que não, calma, invadir nunca e tal. Aí já viu, se os coitados invadem, perdem o emprego. Todo mundo se cagou, eu já tava lá dentro e tive que voltar, mas antes peguei o de óculos, aleijei o filho da mãe. Um dia eu pego aquele bundão que me estragou tudo".

O bar fica em silêncio. Alguns sorriem, dois ou três riem. Só não riem nem sorriem os que conhecem o Bruno. Gustavo Moscão se empolga: "Eu sei, eu sei, tu levou a direita pro lado da cara dele e ele cuidou em cima enquanto tu metia o pé nos ovos atirando o viado pra cima, gente, na dobrada de dor aí vai o mata-cobra no ouvido, o Contra tem uma pegada...". Jussara cutuca o Gustavo com força. O bar segue em silêncio.

Jucão da Maresia diz em voz baixa: "Mas aí tu ia livrar os grandes ladrões, empresários, políticos, os processos de sonegação contra eles...".

Bruno Contralouco o olhou espantado e respondeu: "Esses aí nunca vão pagar mesmo, meu chapa, acorda".

Carlinhos Adeva, o diretor jurídico do Partido dos Boêmios, dobra-se e diz somente para a turma das quatro mesas centrais ouvir:

"Mas, Contra, tu é louco, não iria adiantar, a Receita Federal tem os dados, ela que mandou para lá, fariam novo processo...".

"Aí que tá, Carlinhos. Antes pensei direitinho: eu incendiava a Justiça e descia correndo pro térreo, pegava meus 30 ou 40 companheiros e me mandava pra Receita Federal, que é ali pertinho. Enquanto a tropa de choque chegava na Justiça pra bater na peonada, eu e os mais galos já estaríamos na outra, nesta eu incendiaria tudo, não interessa se eles tem tudo no computador, sem o papel não vale nada".

Com essa Aristarco deu uma estremecida e se levantou, copo na mão, e disse:

"Gente, hoje cheguei bem aqui, mas o bar começou a rodar, então antes que eu saia voando proponho um brinde ao querido amigo, não sei como ainda me surpreendo. Que Deus o conserve e guarde! Ao Contralouco!".

Até os que antes sorriram e riram levantaram-se com sofreguidão. Ao Contralouco!

O Contralouco, inocentemente, ar lamurioso, levantou-se e brindou junto.

Tintim.







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