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Nicolau Gaiola, o ator e teatrólogo, chegou ao Botequim quando este já estava lotado, com a turma da diretoria lá pela trigésima repolhuda. Arredaram um pouco e ele sentou-se no meio das três mesas unidas no centro do bar. Recusou cerveja e pediu um uísque, para não misturar, explicando que vinha de casa já com meio frasco no juízo.
Depois das amenidades, Clóvis Baixo retomou o assunto interrompido pela chegada do artista.
- Gente, esse negócio tá muito batido, vamos falar de mulher, todo mundo acertou no buquimequi, não tem novidade.
- Que assunto?, perguntou Nicolau.
Clóvis Baixo, já meio pra lá de Bagdá, empolgou-se e explicou, simulando grande contrariedade.
Clóvis Baixo, já meio pra lá de Bagdá, empolgou-se e explicou, simulando grande contrariedade.
- Ora, o Livrandowski, que absolveu todo mundo. Ontem apareceu no tribunal trajando um conjuntinho preto cheio de estrelinhas vermelhas, com uma sombrinha de dançarina de frevo, numa de Bloco Eu Sozinho. Teve um faniquito e saiu inocentando até o pai do Badanha. Tornou a absolver Caim, Barrabás, Judas e Al Capone numa sentada. Não contente, arregalou os olhos, subiu na mesa e saiu bailando e dando pulinhos de mesa em mesa, cantarolando Loco! Loco! Loco! Como un acróbata demente saltaré, e quando chegou na do Joaquim Barbosa arrancou-lhe bruscamente o microfone e, emocionado, interpretou O Ébrio, do Vicente Celestino. Depois emitiu uns grunhidos selvagens e voltou pro seu lugar, foi quando libertou os caras que ele mesmo havia condenado. Delirava, gritando que quadrilha não é apenas mais de três reunidos para cometer crimes, precisa também haver consanguinidade até segundo grau entre os réus. Rindo desvairadamente proclamou que quadrilha só existe no dia de São João. Disse isso e pegou no sono ali mesmo.
- Ô criatividade..., disse Wilson Schu.
Nicolau resolveu mostrar seus dotes artísticos, inspirando-se nos exageros do Clóvis Baixo. Levantou-se, vestiu o casaco, mexeu nos cabelos, concentrou-se e surgiu com outra aparência, um tantinho assim, digamos, como Napoleão de hospício, ou Collor. O bar inteiro prestou atenção. Começou solene, com entonação e franqueza de político:
- Queridos amigos, eu recordo muito bem. Ocorreu ontem o aristotélico discurso do mestre Livrandowski, uma aula magna, prenha de religiosidade, proferida no sagrado ambiente do Supremo Tribunal Federal, o país se quedou envergonhado diante da independência do tribuno. E que voz! É inolvidável, jamais esquecerei a etílica interpretação de Vicente Celestino, pois coincidiu que nesse dia fatídico dei por falta de duas das três garrafas de Chivas que eu idolatrava há cinco anos, e que os vizinhos dizem ter sido afanadas por um polaco de capa preta que pulou a janela do meu lar na minha ausência. De que adiantou guardá-las com tanta veneração!? Fui amaldiçoado! Não dei ouvidos aos filósofos que ensinam que se a gente não... beber os outros bebem. Oh, tristeza! Hoje, chorando, bati na última, que já estava pela metade.
Estremece ao ver o copo em sua frente e o empunha com gestos teatrais, agitando as pedrinhas de gelo. O rosto se comprime, canta com amargor: Cada colega, cada ministro era um ladrão, me abandonaram e roubaram o que amei. As lágrimas escorrem pelo seu rosto. Sorve um gole e exclama aos céus:
- Néctar dos deuses! De ministros! De consulpones! Com duas de Chivas na cabeça eu não quero nem saber, absolvo até o José Dirceu! Mas hoje ao ver-me na miséria, aqui tomando esse Drurys, tudo vejo então...
Cai de joelhos no chão murmurando devo condená-los, cabeça curvada na mais comovente dor.
Aplausos de todo o bar. Viva! Bravo!
Já acomodado de volta com os companheiros, Mr. Hyde lhe diz:
- Mas tu não falou nada sobre a apresentação do Livrandowski, o que ele disse, afinal?
- Ah, não precisou de altas filosofias, um pequeno detalhe técnico foi o suficiente para ele liquidar com o Joaquim Barbosa. Foi de dar dó.
- Tá, mas qual detalhe?, perguntou Jezebel do Cpers.
- Seguinte: Formação de Quadrilha. Vejam bem: formação. Deriva do latim formare, que remete ao substantivo fôrma, molde, isto é, guarda um significado concreto. Daí que a quadrilha precisa ser devidamente constituída segundo as leis do Brasil. "Formação de Quadrilha", o nome já diz, é básico. Se a Quadrilha for comercial precisa ter seus atos constitutivos devidamente arquivados na Junta Comercial. Se for de serviços de consulponeria, no cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Em ambas as hipóteses com CNPJ concedido pela Receita Federal, sem prejuízo de registro no fisco estadual e municipal, a depender do caso. Elementar: se os caras não tinham nada disso, como formariam uma Quadrilha?
A turma ri e novamente aplaude, mas Carlinhos Adeva se presta, e, como advogado da confraria, intervém:
- Mas pera aí, e a sociedade irregular ou de fato? Não confundam com o domínio do fato. Sociedade irregular, sem ato formal, sem registro de nada, onde as pessoas, de boca, contratam entre si a realização de uma atividade com o objetivo de meter a mão nos lucros? Tá lá no Código Civil...
- Sei lá, de repente nem isso havia, diz Nicolau.
- O que é "consulponeria"?, pergunta de outra mesa o jovem Cícero Bom Cabelo.
Essa Lúcio Peregrino faz questão de esclarecer:
- É serviço de consultoria prestado por consulpones, os consultores de porra nenhuma. É a profissão de políticos de dentro e de fora do governo. Também conhecida por "Tráfico de influência" e "Venda de segredos nacionais", é outra que precisa registro como Pessoa Juridíca, de outro modo não dá nada.
Nesse instante o Contralouco entra a mil no botequim, reclamando que está morrendo de sede. Pede uma loira gelada e vai contando aos amigos:
- Vou quebrar a cara de novo do aspone de deputado ruralista. Tava até agora fazendo espera pra ele na frente da Mercearia Zaffurtari, mas hoje ele não apareceu.
- Aiaiai, Contra, mas por quê?, pergunta Jussara do Moscão.
- Por que não gosto dele, quer mais?
Terguino vem da cozinha e assume o caixa no lugar da Leilinha. Ela vai até as mesas cobrar as charges do dia.
Os boêmios ficaram com o Pelicano, do Bom Dia (São Paulo, SP). Nesta explodiram em gargalhadas, alguns choravam de rir. As pessoas das outras mesas, inclusive alguns estranhos no ninho, se encorajaram e pediram para ver, juntou uma pequena multidão no centro do botequim. Aproveitaram e olharam as seguintes. O bar seguiu uma festa.
E com o Xalberto.
Leilinha Ferro, que lá do caixa assistiu enlevada a performance do Nicolau, ficou com o Sponholz, do Jornal da Manhã (Ponta Grossa, PR).
(A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que há poucos dias se..., bem..., se fundiram (veja AQUI), devido a dívidas com o sistema agiotário, como eles dizem. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro)
SALAZAR, como sempre, Mestre da Criatividade, aproveita o diz que diz das atualidades e antiguidades e transforma em hilárias realidades de seu fértil imaginário. Crítica inteligente e de bom humor que encanta na sua leitura... ABRAÇOS (Estou desconfiando da identidade secreta deste tal NICOLAU GAIOLA)
ResponderBorrarOs paus-d'água são uma mina de ouro, amigo Nicolau. Abraço.
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