Aquele 6 de maio transcorreu gris em Palmeira dos Ervais. João da Noite estava inquieto desde o raiar do dia. Não era o frio que o incomodava, e sim a solidão diante dos podres poderes. No meio da tarde, sozinho na obscuridade do casebre, abriu a última garrafa de conhaque. Fumando cigarrillos negros bebeu metade.
Ao entardecer saiu a esmo pelas ruas desertas e molhadas da cidade, o vento arrastando papéis e galhos, dobrando árvores. Seguiu sem rumo, com o chapéu puxado sobre os olhos e com a meia garrafa por dentro do poncho. Já noite fechada, sentou-se na escuridão de um banco da praça central. Enquanto bebia em pequenos goles, refletia: “Já fiz tudo o que poderia fazer aqui, já li todos os livros da biblioteca pública, e agora ainda sem emprego, tolerando os filhotes da ditadura...”. Quando percebeu a garrafa vazia, virando-a de ponta para baixo, estalou na mente a única alternativa: “Vou fugir”.
Levantou-se decidido a abandonar os que na verdade, pensava, nunca foram seus.
Aqui é que começa esta triste história. Como João não tinha para onde ir, passou no quarto que habitava, pegou as poucas roupas que possuía, o livro sobre técnicas de guerrilha do Guevara, e foi para a zona do meretrício. Em Brasília seria bem recebido, mantinha boas relações com o Padrinho e com o Zé Careca, bem como era conhecido de todos os habitantes por graças da sinuca e do futebol, haveriam de lhe arranjar um lugar por algum tempo.
A zona, ou Brasília, se diz filha da cidade localizada nos confins do Planalto Central brasileiro, o nome é em sua homenagem. Distava pouco mais de um quilômetro de Palmeira, no cimo de um morro, para se chegar lá era preciso enfrentar uma íngreme subida, daí que havia o serviço de lotação, a “Arca do Noé”. Dizemos que a zona ficava próxima à cidade, assim, no pretérito, mesmo que o logradouro lá continue, porque não mais existe a zona, perdeu a sua razão de ser na medida em que os prostíbulos tomaram conta, estão em todos os lugares das cidades e capitais, os novos tempos acabaram com a injusta discriminação.
Lá em Brasília que se deram os terríveis fatos que se seguem. Ainda que os acontecimentos tenham ocorrido no século passado, alguns personagens tiveram seus nomes trocados nesta narrativa, pois muitos ainda estão vivos. Muito vivos.
Às dez da noite daquele 6 de maio João pegou o lotação do Noé e se foi. Instalou-se num quartinho dos fundos do negócio do Padrinho, que era um misto de restaurante e motel, situado na rua principal. Este declarou: “Te devo obrigação, aqui tu pode ficar de graça quantos anos quiser”.
Brasília possuía cinco mil habitantes e uns cem puteiros, fora as casas de moradia. Embora separado da cidade, era disparado o maior bairro de Palmeira dos Ervais, quase um terço da cidade. Os principais cabarés eram o “Chora Teimosa”, o “Casablanca”, o "Maranhão" e o “Recanto do Amor”, com o “Kubanacan” correndo por fora, todos com música ao vivo, cortinas de luxo, suítes, camas d’água, tudo de primeira. Lá ao pé da zona tinha o “Põe no Meu”, este tão vulgar quanto famoso pelos preços acessíveis. Cinco mil moradores, porém com população volante muito maior, vinha gente de todo o Brasil.
Ao cabo de um mês e João ainda não tinha mulher fixa nem planos para o futuro, estava treinando, reconhecendo o terreno. Havia muito o que aprender. Porém já sabia de algumas coisas: a Alemoa não era a dona verdadeira do Chora Teimosa, o que poucos sabiam, segredo de estado, e sim mera testa-de-ferro do Serra, um contrabandista de cigarros que aparecia de vez em quando. O Casablanca também não era da Andressa, esta uma cafetina chantagista que representava o Carlinhos Goiano.
O Maranhão não era da Bastiana, e sim do José S. de Araújo, conhecido por Dino (ssauro), um escravagista que tinha plantações no Espinilho, emissoras de rádio, além de ser dono da Câmara de Vereadores. O Recanto do Amor não era da Manoelona, pertencia ao Luiz Inácio, um gordinho conversador que ninguém sabia do que vivia. O Kubanacan era do Daniel Mendes, um agiota e traficante de interesses. Por fim, o Põe no Meu era do Delúbio, o tesoureiro da prefeitura. Todos os lupanares famosos eram propriedade de pessoas que não mostravam a cara, à exceção do Delúbio tesoureiro, até ali.
O Maranhão não era da Bastiana, e sim do José S. de Araújo, conhecido por Dino (ssauro), um escravagista que tinha plantações no Espinilho, emissoras de rádio, além de ser dono da Câmara de Vereadores. O Recanto do Amor não era da Manoelona, pertencia ao Luiz Inácio, um gordinho conversador que ninguém sabia do que vivia. O Kubanacan era do Daniel Mendes, um agiota e traficante de interesses. Por fim, o Põe no Meu era do Delúbio, o tesoureiro da prefeitura. Todos os lupanares famosos eram propriedade de pessoas que não mostravam a cara, à exceção do Delúbio tesoureiro, até ali.
João custou a crer, mas decidiu ficar de bico bem fechado, tinha muito o que aprender não só sobre a nova sociedade, mas sobre a matriz, de onde emanavam as ordens. Precisava conhecer os puteiros menores, os coronéis, os otários. Por enquanto era camarada de algumas putas e dos porteiros dos cabarés. Por um instante teve a impressão de que a nova sociedade não era muito diferente da outra, da qual fugira, mas afastou a ideia, não seria possível.
Zé Careca o advertiu: cuidado para não ficar tísico, rapaz, você anda treinando demais.
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