Descoberta de documento que permaneceu oculto por mais de quatro décadas expõe como funcionou a política de corrupção, violência e extermínio do Serviço de Proteção aos Índios antes e durante a ditadura
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), representado por Flávio de Abreu, chefe da 6ª inspetoria, localizada em Mato Grosso, vendeu a pequena índia Rosa, 11 anos, em plena hora da escola. Ela e as colegas bororos foram obrigadas a parar os estudos e formar fila. Abreu estava acompanhado por um sujeito chamado Seabra, que escolheu a índia que queria para si. A vida de Rosa foi entregue a Seabra pelo funcionário público como pagamento pela construção de um fogão de barro em sua fazenda. Ao pedir clemência a Abreu, o pai da menina foi covardemente surrado. A denúncia, que expõe a institucionalização da violência contra os índios no Brasil, faz parte do Relatório Figueiredo, um documento de mais de sete mil páginas produzido pelo procurador federal Jáder Figueiredo entre 1967 e 1968 a pedido do extinto Ministério do Interior. O trabalho mostra a corrupção endêmica, os métodos de tortura e escravização e a exploração do patrimônio indígena por funcionários do extinto SPI – órgão antecessor à Fundação Nacional do Índio (Funai).
VIOLÊNCIA
Relatório expôs a situação de penúria e exploração
em que viviam os índios sob os cuidados do SPI
Relatório expôs a situação de penúria e exploração
em que viviam os índios sob os cuidados do SPI
Depois de quatro décadas longe do escrutínio público, o relatório foi finalmente redescoberto pelo pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. Ele procurava há tempos o documento, mas o encontrou, por acaso, no arquivo do Museu do Índio, no Rio de Janeiro (leia quadro abaixo). Com o AI-5, o material ficou esquecido nos arquivos da Funai. Inclusive, muitos pesquisadores acreditavam que ele teria sido perdido em um incêndio no Ministério da Agricultura – na verdade, a tragédia aconteceu às vésperas da Comissão de Inquérito de Figueiredo. Agora, uma cópia está com o grupo de trabalho “Graves Violações de Direitos Humanos no Campo e/ou Contra Indígenas” da Comissão Nacional da Verdade.
Jáder Figueiredo foi uma figura ímpar, que desagradou a esquerda e a direita. Apesar de ter sido destacado para o trabalho pelo general linha-dura Albuquerque de Lima, que à época ocupava a pasta do Interior, a gravidade de suas acusações – que vão de desvio de recursos e venda de terras indígenas a assassinato, prostituição de índias e trabalho escravo –, colocaram-no contra o próprio regime militar. Foram muitos os esforços para mitigar a repercussão do escândalo no Exterior. As denúncias chegaram a ser destaque no jornal americano “The New York Times” e na revista alemã “Der Spiegel”. Um documento confidencial da Aeronáutica, de 26 de outubro de 1970, localizado pelo grupo Tortura Nunca Mais, afirma que “o fluxo de informações contra o Brasil no Exterior é constante e se faz em larga escala”. Logo abaixo, diz que “o trabalho relativo à ‘matança de índios’ foi completamente neutralizado e desmoralizado face às atividades das autoridades brasileiras”. Não é de se estranhar, portanto, que o Relatório Figueiredo tenha ficado mais de quatro décadas esquecido no arquivo da Funai, cuja criação em 1967 coincide com a extinção do SPI. “Evidentemente, o fato de ele ter permanecido oculto nas bases de dados da história brasileira foi intencional”, diz o professor Fernando Antonio de Carvalho Dantas, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.
HISTÓRIA
Jáder Figueiredo Júnior (com a foto do pai) e trechos do
documento (acima): denúncias de violência contra os índios
Jáder Figueiredo Júnior (com a foto do pai) e trechos do
documento (acima): denúncias de violência contra os índios
Mesmo tendo sido responsável por uma crise dentro do regime, Figueiredo também é visto com reticências pela esquerda, justamente por ter servido, na condição de funcionário público, aos interesses do Ministério do Interior. A psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional da Verdade e coordenadora do grupo de trabalho que estuda violações contra indígenas, é cautelosa ao comentar o documento: “Teremos de procurar na história daquele momento outros subsídios para poder avaliar se o relatório não prejudica funcionários acusados injustamente só porque eram contra a ditadura”, diz. Para o pesquisador Marcelo Zelic, é preciso lembrar, no entanto, que as primeiras denúncias que dão origem à Comissão de Figueiredo são levantadas em duas CPIs anteriores, instauradas ainda durante o governo de João Goulart. Além disso, a maior parte dos crimes apontados por ele ocorreram depois do golpe de 1964. “Até pode haver casos de perseguição em meio aos 131 acusados que aparecem no relatório, mas você não pode generalizar e desmerecer um trabalho dessa magnitude”, diz.
NO EXTERIOR
O Relatório Figueiredo repercutiu no "The New York Times",
o que desagradou o governo na época
O Relatório Figueiredo repercutiu no "The New York Times",
o que desagradou o governo na época
Isso explica a marginalização política de Figueiredo e de seu relatório, que deu origem a uma CPI e gerou dezenas de inquéritos policiais dos quais ainda não se tem notícia. Hoje, grande parte do trabalho de resgate da figura do procurador está nas mãos de seu filho, o advogado Jáder Figueiredo Correia Júnior. “Meu pai passava semanas sem se comunicar”, conta. Foram visitados 130 postos indígenas em 18 Estados – uma viagem de 13 mil quilômetros pelo Brasil. A família, que sempre viveu em Fortaleza, no Ceará, conviveu por muito tempo com ameaças. “Mesmo assim ele seguiu com o trabalho. Era destemido e incorruptível e por isso contrariou o interesse de grandes políticos da época”, diz. Figueiredo morreu em 1976, aos 53 anos, em um acidente de ônibus. Vivia, segundo o filho, frustrado por pouco ter sido feito contra os acusados e pela continuação dos crimes.
MISSÃO
Figueiredo rodou mais de 13 mil quilômetros no Brasil
e testemunhou violações contra povos indígenas
A redenção do procurador deve acontecer agora, com a redescoberta do documento que tem implicações até no presente. Segundo Cléber Cesar Busatto, secretário-executivo do Conselho Missionário Indigenista, o Ministério Público já anexou o documento aos autos do processo que pede a demarcação do território dos cadiueus, em Mato Grosso do Sul. Figueiredo, no documento, afirmou: “Estima-se em 800 mil hectares a área dessa imensa propriedade, não demarcada e hoje totalmente em poder de fazendeiros que se beneficiam de arrendamentos ilegais”. “Sem dúvida o relatório será usado como instrumento em outras disputas”, diz Busatto.
Ou seja, apesar dos esforços para apagar a verdade das violações, o relatório é um instrumento importante para esclarecer o passado. “A história dos direitos dos povos indígenas será recontada a partir do relatório”, diz o professor Dantas, ressaltando que os crimes nunca foram apagados da memória dos povos e das pessoas que lutam pelos índios no País. Segundo o antropólogo Carlos Augusto da Rocha Freire, coordenador de Divulgação Científica do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, são justamente essas memórias que ajudarão a reconstruir o que falta dessa história – 533 páginas, que representam 7% do documento, ainda estão desaparecidas. Freire diz que a repercussão internacional do Relatório Figueiredo fez com que a questão indígena fosse amplamente discutida, mas não impediu que a Funai repetisse a estrutura do SPI e adotasse uma política que dizimaria povos como os Paraná, afetados pelo projeto econômico desenvolvimentista da ditadura. “Se os velhos sertanistas e indigenistas, além das velhas lideranças indígenas, começassem a escrever suas memórias, fizessem entrevistas relatando o que viram e ouviram, e os índios incrementassem suas narrativas sobre o que sofreram nesses anos, os brasileiros, certamente, poderiam vir, agora sim, a descobrir um outro Brasil.”
PARABÉNS SALITO PELA PUBLICAÇÃO ...
ResponderBorrarESSA É UMA HISTÓRIA QUE DEVE SER DESVENDADA...