Em memória de Jesus Adelar de Lima.
Lá por 1968, Vinte e Um e eu éramos pouco mais que meninos, perdidos numa cidade no interior do Rio Grande do Sul. Um pouquinho tantãs, por razões do instinto: as verdadeiras razões ainda desconhecíamos, dormiam em nossa falta de tudo, eu custaria muito, muito tempo, a conseguir colocá-las em palavras. Para uns, doidos; para outros, recalcados. A cidade não nos discriminava tanto assim, por sermos bolso vazio, até que foi bondosa, só tive que fugir. Isso comigo, que jogava futebol, com ele nem tanto. Disse que eu consegui, muitos anos depois, colocar em palavras os sentimentos, porque o 21 ficou pelo caminho.
Até hoje sou recalcado, adorei ser chamado assim pelo silêncio repugnante, evasão. Numa sociedade como a nossa, pobretão que não é recalcado é burro ou covarde, até que aguentei bem.
Certa vez, iniciamos a luta na sinuca ao meio-dia de um sábado. A sinuca era para livrar uns trocos, porém mais para viver, pois aprendia-se a viver naquele ambiente enfumaçado, faculdade das ruas, única. Cada figura... homens feitos, que sabiam tudo, de boemia, de cabarés, de música, de mulheres, de políticos, da capital... da vida.
E de jogo: no jogo e no amor é que se vêem as maiores desgraças, dizia um dos meus coroas prediletos, basta cabeleira branca, alto, bem apessoado, copo na mão. Quando estava perdendo muito, ele sorria e começava a cantar "Os pobres de Paris". Encestado forte, sem dó, saía: ...com os pobres de Paris, aprendi uma lição, a fortuna encontrei, no meu coração... Ah, ali se via de tudo, também gente mesquinha, traiçoeira... não há nada que não se perceba em torno do pano verde.
Vinte e eu éramos bons de cesta. Se deixar abrir, sai da frente, era a bola cinco no meio, lâmina, pensamento passando forte, quando não a preta afinada no fundo, atiradas da meia-lua. Feras mesmo, que mereciam estar jogando nos States, onde dinheiro forte corria em jogatinas, eram o Chitão e o Pato. Mas estes eram nossos manos de sangue, e irmão não ganha de irmão, na concepção que tínhamos. Isto para não dizer que lobo não come lobo.
Bem, foi preciso este prólogo para poder começar a história, alguém iria ficar se perguntando o que fazia lá na sinuca, em pleno sábado à noite. Abro a janela agora, marejou, uma historinha de nada, mas que tanto abala meu coração.
Eu tentava fazer a vida, queria ir a um baile, num lugar que eu não gostava. Não gostava dos donos, o ingresso era caro, precisaria comprar mesa... muita despesa. Eu não tinha namorada, lá não teria amigos do peito, só gente ruim lá. Claro, haveria os caras do futebol, eu era famoso com a negada, mas não iria constrangê-los, junto da bola tinha o gênio inquieto. Namorada tinha, em pensamento, mas a moça olhou com desdém a minha família, aí entrei numa de jamais namorar alguém daquela cidade, o que cumpri religiosamente até este momento em que escrevo estas linhas (uma horrenda bobagem, e injusta, coisa de menino triste). Sonho que o mundo tenha mudado.
Pois é, anoiteceu, logo dez da noite, mais um pouco e meia-noite chegando... e Vinte e eu ganhando, mas pouco. Não via como pelar os caras em tão pouco tempo, a tempo de pegar o baile. Tempo, tempo, tempo... Não tinha tempo.
Pois é, anoiteceu, logo dez da noite, mais um pouco e meia-noite chegando... e Vinte e eu ganhando, mas pouco. Não via como pelar os caras em tão pouco tempo, a tempo de pegar o baile. Tempo, tempo, tempo... Não tinha tempo.
Para quem não sabe, em jogo assim, de mano a mano, você não pode abandonar se está ganhando, homem de moral não pode, é de lei. E estávamos ganhando, mas eles não paravam, nem perdiam demais. Não eram grandes jogadores, mas uns tipinhos do "dou ali mesmo", gente que pensa em vencer se escondendo, consciência da pequenez, dificulta, enoja.
Aí o Vinti de repente liquidou a vida que jogávamos em dupla, de uma pedra para cada dois. Encestou cinco bolas de estouro, como quem tem pressa, a sexta e última de fiapo no meio, fechando o número. Vida com matada, embolsou o monte de notas casadas na caçapa do fundo e mais o preço das cestas.
E veio a surpresa, Vinte e Um falou alto: "Sala, não quero continuar contigo como parceiro, tá pensando longe, acho que é aquilo da tua mãe estar doente, os caras não vão levar a mal, pego o Mão Pelada de parceiro, te manda!". Disse isso e pediu uma cerveja no caminho para o banheiro.
Esbocei reclamação, mas foi definitivo, pelo jeito que ele falou o Mão Pelada já escolhia o taco na parede. Os adversários, que eram estrangeiros, não reclamaram, esperavam mais sorte com a mudança. Deram um azar danado, soube depois, o Mãozinha estava com mão de anjo naquele dia. Larguei o taco na mesa ao lado e saí sem me despedir. O meu dinheiro mal daria para pagar o ingresso, onde o Vinti andava com a cabeça. A minha metade desta última partida estava no bolso dele, mas ainda seria pouco. A minha vida ficou pior, escureceu, sensação de nada por dentro.
Noite escura, me sentei na mureta ao lado do bar, já fechado, defronte à sinuca, no outro lado da rua. Então vou procurar um bar, longe daquele baile, e tomar um fogo. Droga é ficar de fogo e ter de chegar em casa pé ante pé, a mãe parece que nunca dorme.
Começo a andar e o Nego da Luz desce as escadas da sinuca manquejando, o reconheci de ouvido lá atrás, às minhas costas, pelos passos imperfeitos, até se aproximar, sôfrego: "Sala, no banheiro o Vinti mandou eu dar um tempo e depois te alcançar isto", e me entregou um embrulho. Abri na rua vazia. Toda a grana, minha e dele. Nego da Luz ainda diz, antes de retornar: "E é pra ti não voltar, de jeito nenhum, e pra deixar o punhal em casa".
Ele ficou lá jogando no frio, isto é, sem nenhum no bolso, no peito, isso não se faz. Como não tinha volta, contei a gaita, chamei o Nego de volta e mandei devolver um quarto. O nome do 21 era Jesus, tá lá em cima.
Aí corri até em casa colocar aquela camisa, ao entrar a mãe disse "Oba, temos visita em casa...", dei um beijo nela. Em pouco tempo eu estava na frente do lugar onde o baile recém iniciava. Se lá dentro tivesse uma alemoa chamada Marli...
Naquela vez algo me dizia que era hoje ou nunca. Foi hoje. Eu ia ver, sim senhor, e ouvir, Miltinho.
Lindo conto. Lembranças...me emocionei. Tentei lembrar essa época, minha memória anda pra lá de Bagda
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