viernes, 8 de junio de 2012

A Criação

.
Por Gilberto Kieling*


.
Quando Bartolomeu interrompeu a construção do barco pela centésima vez, a noite já pousara seu manto suave sobre a cidade, tão pequena que em todas as direções ele podia vislumbrar o recorte do horizonte. Dizer que interrompera seu trabalho cem vezes encerra, é claro, um certo exagero. Mas Bartolomeu não saberia calcular as impertinentes interrupções, tantas foram.

Desta vez era a tia Anastácia, senhora já de idade, conhecedora como ninguém da vida dos moradores da redondeza, que se recostara na porta de entrada do galpão, braços cruzados à frente. Bartolomeu, antes de atender o chamado, depositou a talhadeira e o martelo sobre a mesa e contemplou a obra inacabada, calculando os próximos detalhes a serem trabalhados. Depois então suspirou fundo e foi até ela.

- Por que você insiste nisso, Bartolomeu?

Lembrou que ela era a autora daquele seu nome bíblico, e embora o tom maternal da pergunta, retrucou:

- Outro sermão, tia? Aqui já vieram o vigário, o açougueiro, e agora a senhora. Isso é complô? Romaria pelo avesso?

- Pro seu bem, rapaz. Acho que não quer entender a gente. Coisa mais estranha...

- Eu sei, eu sei. Mas vai continuar estranho, tolice de toda essa gente.

Não podia deixar transparecer a impaciência que carcomia o peito, nem botar a velha a correr. Era importante ser gentil com a tia Anastácia, manter a indispensável calma. Não estava disposto a explicar seu trabalho, mas nem por isso precisava escorraçar aquelas pessoas que, no fundo, eram importantes na cidade e na sua vida de pequeno agricultor. Todos ali tinham visto Bartolomeu nascer, virar macho, se encantar com a filha da costureira Eugênia e com ela casar na capela da cidade, sob o olhar aprovador de toda a comuna. Tudo tão normal, tão esperado, tão gratificante. Sua vida, em suma, tinha sido até então uma seqüência de passos e atitudes tão lógicas, tão normais, que a estranheza que vinha provocando nos parentes e amigos tinha efeito devastador sobre ele próprio, e não tanto sobre aqueles que enrugavam o sobrolho. Admitia que causava perplexidade, mas fincava pé no seu projeto prometendo não largá-lo enquanto não acabado, uma questão de impulso, de honra, sei lá.

Tia Anastácia ainda conversou algum tempo, tentando demovê-lo, depois lastimou um calo enorme no pé esquerdo que vinha incomodando há tempos, e saiu desejando boa noite. Bartolomeu respirou aliviado ao vê-la desaparecer no quadrado da porta. Seu olhar pendeu, automaticamente, na direção do barco. Vai ficar uma jóia capaz de embelezar qualquer rio, as pessoas irão festejar seus passeios, ninguém poderá ficar indiferente a uma obra de arte deslizando sobre a água.


Mais de cinco metros de comprimento, bojo achatado, proa bastante afilada para melhor deslizar sobre a água, suspenso sobre os cavaletes, com as forquilhas prendendo as primeiras tábuas até a secagem que lhes daria a forma definitiva. Bartolomeu contemplou o esqueleto extasiado, já imaginando-o completo, pintado e lutando com as marolas e o vento sudoeste.

Trabalhava nisto há dois meses, e este tempo já superava seu planejamento. Não calculara as interrupções, a resistência da mulher, dos parentes e amigos, que não gostaram da idéia. Um colono deve cuidar da roça e dos filhos e pescar nos fins de semana, tinham lhe dito. Como podia imaginar que sua obsessão geraria tanta preocupação? Ele próprio se surpreendera quando, duas semanas antes, a mulher pedira uma conversa mais séria. Imaginou fossem apenas saudades dos papos do tempo de noivado, sempre tão sérios e dramatizados, onde pareciam questionar a vida e a morte. Concordava que aquelas conversas trágicas tinham desaparecido após o casamento, mas logo descobriu que tinha se enganado. Ela pediu-lhe que abandonasse o barco.

- O tempo e o dinheiro que vai gastar com ele dão prá comprar quatro barcos comuns, destes que todos usam. São barcos excelentes, usados há tantos anos...

Bartolomeu ficou calado, procurando transmitir no olhar a compreensão que sentia. Ela estava visivelmente preocupada, mas concluiu que seria inútil explicar-lhe que não queria um barco igual àqueles usados há séculos no rio.

- Estamos quase sem mantimentos. Faz um mês que você abandonou a roça.

Agora ela alcançara o ponto mais frágil, usara a arma mais venenosa. A expressão de Bartolomeu mudou rapidamente, sentiu-se culpado. A frase soara como uma paulada, um coice, um empurrão do último galho do jacarandá.

Modificou seu planos e fez um intervalo, antes não previsto, para cuidar da família. Isso levou uma semana. Visitou a lavoura de milho, quebrando hastes para impedir que a umidade deteriorasse as espigas quase secas. Fez farinha, nata e manteiga. Trocou alguns sacos de milho por feijão e arroz. Tratava de abastecer a despensa novamente.

Mas, mesmo com os pés enfiados na terra, capinando ervas, não esquecia o barco inacabado. Voltou para o galpão com mais um detalhe a ser acrescido à embarcação, uma figura deveria ser posicionada na proa, embelezando e observando as margens do rio. Esculpiu uma carranca, ou algo parecido com o que vira num livro de geografia do ginásio. Saiu um busto de índio guarani, imagem dura, viril. O índio custou-lhe muitas horas de trabalho com a talhadeira e a lixa, mas a imagem final agradou. Testa larga, nariz adunco, queixo proeminente. Os olhos de Bartolomeu brilharam satisfeitos; afinal, tanto trabalho só podia resultar em coisa boa, e isto lhe daria uma noite de sono tranqüilo.

Efetivamente, adormeceu feito um justo cansado, sem imaginar a medonha surpresa da manhã seguinte. Levantou bem cedo, tomou seu café com ar satisfeito e foi ao galpão. A carranca, no entanto, tinha desaparecido.

Não encontrou vestígios de depredação nem a ausência de qualquer outro bem. O gatuno levara a peça, e somente ela, talvez julgando-a digna de uma transação de valor, sabe-se lá onde. Bartolomeu amargou muito a desgraça e teve de ser consolado pela mulher que, no íntimo, não se condoía tanto quanto deixava transparecer. Pura tolice ter deixado o guarani no galpão, sem tranca ou cadeado na porta. Precisou de algum tempo para criar entusiasmo e iniciar nova escultura. Mas começou bem disposto, guardando a figura a sete chaves durante a noite. Não voltariam a surpreendê-lo.

Bartolomeu sabia que o que realmente inquietava seus amigos não era o fato de estar fazendo um barco, atividade que todos ali conheciam em maior ou menor grau. A proximidade do rio forçava a convivência com chalanas, balsas, caíques. Embora raros possuíssem a ferramentaria adequada e fizessem daquilo uma profissão, todos conheciam as artimanhas necessárias à construção de um barco. Todos sabiam fazer consertos e remendos. O perturbador, na verdade, não era Bartolomeu fazer um barco, mas aquele barco.

Bartolomeu sentia sobre os ombros o peso dos olhares que ora se mostravam reprovadores, ora estupefatos. Alguns abanavam a cabeça, davam de ombros, aceitando o inegável direito que todos temos de um dia perder o tino, endoidecer, sair por aí fazendo bobagens e escandalizando os outros.

Sabendo-se dono e senhor da própria cabeça, procurava ignorar as alusões sobre sua perturbação e só de vez em quando despertava para os reclamos da mulher. A casa ficando abandonada, a lavoura sem cuidados, volta e meia a falta de mantimentos na despensa. Tratava então de rever a lavoura, abater uma rês e colocar a carne ao sol, fazer trocas com os comerciantes do vilarejo. Calculava o tempo que a nova provisão lhes daria sustento, e depois que tudo estava em ordem voltava a envolver-se com o barco. Tia Anastácia visitava a família e dirigia um sorriso reconfortante à sua mulher: ele teve recaída, minha filha, não se apoquente pois isso passa.

Aprontou a segunda carranca, a que não seria roubada, e gastou mais alguns dias aplicando piche nas frestas. Com a faca raspou as sobras quando o piche se avolumou num dia mais quente, e após aplicou a pintura, marrom claro. Duas listras beges nas laterais. A carranca foi coberta de verniz para não perder seu tom de madeira.

Os amigos foram deixando de lado as visitas habituais, o chimarrão que formava rodas. Bartolomeu percebia que a indiferença de antes se transformava em desprezo. Agora passavam à distância, em cumprimentos que se resumiam no erguer do braço, acenos rápidos de quem não queria ser visto ao lado do doidão.

No dia em que lançaria o barco no Uruguai, Bartolomeu acordou muito cedo. Fez o leite fumegar sobre o fogão a lenha antes mesmo que a mulher despertasse e comeu pão de milho com um sabor inigualável. A aragem fria da matina obrigou-o a botar um casaco, sobre o rio viu a bruma suave se dissipando muito lentamente.

No galpão, posicionou as toras que preparara no dia anterior de forma a conduzir o barco até a água sem grandes esforços. Bastava colocá-lo sobre os paus roliços e ir alternando-os de forma que o último fosse colocado, tão logo livre do peso maior, à frente dos demais. Assim, apenas com a troca de posições, e controlando a velocidade com uma corda presa à embarcação, o trabalho seria sensivelmente menor. Tão logo saiu do galpão, aproximou-se do mato ribeirinho, sempre cuidando que o barco não despencasse do suporte que o mantinha sobre os paus. Com o auxílio de árvores, o trabalho ficou mais confortável, pois os troncos que ladeavam a trilha principal serviam de amarra para a soga toda vez que trocava as posições das toras. Mão de obra desnecessária, pensou, mas evito pedir ajuda aos vizinhos. Certamente não fariam questão de ajudar, Bartolomeu pressentia e não procurou ninguém.

Desse modo, dizia baixinho, faço o que está ao meu alcance, a meu modo, não perturbo e não sou perturbado, isto é o que me basta. E levo o barco até onde desejo.

Sua mulher não demorou muito para aparecer, tirando a remela dos olhos e não escondendo a seriedade diante do marido. Bartolomeu fez que não era com ele, não interrompeu a lida e sequer deu bom-dia. A saudação devia partir dela, que chegava. Mas ela não moveu os lábios e deu-lhe as costas, voltando à morada. Ele prosseguiu na tarefa.

Ao ver a ponta do barco encostar na água barrenta do Uruguai, ele amarrou a corda numa amoreira e recostou-se numa laje para descansar. Sentia-se emocionado e ficou algum tempo contemplando as verberações do sol que surgia detrás dos morros. Na margem argentina alguns pescadores se movimentavam, revistando as esperas ou voltando à casa após a pesca da madrugada.

Quando decidiu colocar o barco nas águas, calmas naquela hora do dia, e vivenciar toda a emoção guardada no peito todo esse tempo, todo dia, toda hora, desde a primeira madeira aplainada, Bartolomeu notou que ruídos abafados chegavam até ele, vindos do barranco às suas costas. No primeiro instante não conseguiu ver nada e chegou a pensar fossem bois e vacas à procura de pasto. Mas chegavam aos seus ouvidos os sons de passos sobre a erva rasteira - passadas humanas são diferentes -, quebrando galhos secos e espantando passarinhos. Quando ergueu-se para acomodar as madeiras, viu que as figuras tomavam posição no barranco, como se escolhessem o melhor lugar na arquibancada. Alguns sentavam no chão, sobre a grama, outros cruzavam os braços, procurando encosto em alguma árvore, experimentando a melhor forma de assistir o espetáculo que ele deveria proporcionar. Taciturnos e arredios, mantinham distância e ninguém puxou conversa.

Entre eles Bartolomeu reconheceu tia Anastácia, o açougueiro Edu, o tio Alfredo e a sobrinha Margarida. A princípio eram apenas eles. Mas, passados alguns minutos em que ele sentiu certo nervosismo pairando no ar, outros se aproximaram, surgindo não se sabe de onde. Todos curiosos, alguns até desconhecidos, que Bartolomeu não lembrava conhecê-los da cidade. Como souberam que ele lançaria o barco nesta manhã? Quem os convocou? Bartolomeu desconhecia as intenções que forçavam aquele estranho ajuntamento. Pensou que alguém iria ajudá-lo a empurrar o barco, e até esperou por isto. Mas ninguém se aproximou.

Em pouco tempo havia uma pequena multidão no alto do barranco, acompanhando seus movimentos, num silêncio combinado. A princípio foi receio o que sentiu por dentro, mas logo um rasgo de lucidez revelou que havia algo bem diferente naquele grupo, algo muito diverso da curiosidade aparente. Aí, sim, foi indignação o que sentiu. Há, entre esses abutres silenciosos, pensou Bartolomeu sem virar os olhos, um acerto que não precisa de palavras, uma convenção muda, um conluio quase inconfessável. Mas nem por isso deixaria de levar a termo o seu empreendimento. O Uruguai me espera, rio belo e traiçoeiro.

Sentiu que aquele grupamento ali tão próximo, parecendo aves de mau agouro, bandoleiros de tocaia, não o deixava com os nervos em paz. Ainda olhou-os outra vez quando o barco começou a entrar na água, e naqueles olhos viu um estranho fulgor, como se fitassem seu barco concentrando energias, contando com algo que estava por acontecer.

Os que estavam sentados se ergueram. A bruma do rio já desaparecera sob o sol e o dia se tornava mais quente. Bartolomeu empurrou o barco lentamente, curtindo o prazer de ver o casco beijar a água. Sentia-se inquieto, sem saber porquê. Voltou-se para observar aquele grupo agourento e viu que todos observavam atentamente, olhos fixos, congelados na direção do seu barco. Reuniam no olhar a energia necessária para danificar a sua obra. O barco boiou ao sabor das marolas, virou de quina para o sul e pendeu para um lado. Logo a água atingiu as bordas e adentrou sem piedade. E quando ele pensou em molhar os pés para subir na embarcação é que percebeu a tragédia. A força da terra parecia puxá-lo para o fundo. Ensaiou um gesto no ar, a mão aflita elaborando movimentos inúteis no espaço da manhã.

Ficou estático, água pela cintura, vendo a embarcação submergir tão logo o Uruguai tomou conta do seu bojo. Restou, unindo-os, a corda de sisal presa à sua mão. Com os olhos mareados, Bartolomeu respirou profundamente, algumas bruscas puxadas na corda, inútil gesto, com elas o barco não voltaria à superfície. Perdido, fitava a superfície líquida que engolira seu trabalho primoroso. Onde o erro? Na escolha da madeira? Nas medidas do corpo e da abertura? Não podia admitir fosse erro de cálculo. Mas o quê?

Girou o corpo e fitou o grupo sobre o barranco. O silêncio permanecia, pesado e deprimente. Nas faces caladas, notou uma expressão diferente. Não havia o ar preocupado de antes, mas a evidente satisfação dos que alcançam suas metas. Alguns esgaçavam a boca desenhando um sorriso. Lentamente, com acenos de cabeça, foram se dispersando. Nada mais tinham a fazer naquele lugar, logo aquela arquibancada natural estava vazia.

Bartolomeu ficou algum tempo sentado. Mas de dentro dele surgia alguma coisa que iria desfazer o seu abatimento, transformar em fumaça aquela dor tão pungente. Ergueu-se determinado, os dentes mordendo os lábios até deixá-los roxos. Amarrou novamente a ponta da corda numa árvore e voltou à casa para buscar a junta de bois. Sozinho não poderia resgatá-lo do lodo do fundo do rio. Crescia a certeza de refazer o trabalho. Amanhã mesmo retomo o serviço, pensou, refaço as medidas, remodelo as espessuras, reconstituo todos os detalhes para fazer o barco ainda mais belo. Remonto. Rebelo-me.




.
*  Gilberto Kieling, escritor gaúcho, é também advogado. Atualmente reside em Santa Rosa (RS). A obra foi publicada originalmente na Revista Ficções.


.

No hay comentarios.:

Publicar un comentario